No princípio, criei deus sobre os céus e a terra


Eu escolhi você amor, não sei por que razão, mistério, invenção, e assim mesmo, sem vírgula, igual à criação, que nunca se tratou de vocativo, mas de graça, feito reza, desejo, súplica ao universo, para dar sentido a todas as coisas, à flora e à fauna dentro de mim.

Depois veio a revelação, na voz da sarça ardente que crepitava nas pontas das nossas línguas, arrebatamento primeiro, amoroso, aquoso e dolorosamente pélvico, e eu adorei você deus, segunda, terceira e onipresente pessoa, enquanto a tua barba, meu sudário, profetizava o nosso fim.

Teu corpo estátua renascentista, milênios depois, na brancura da matéria e nos caminhos elevados das tuas veias, pulsantes, foi minha tumba, para fazer repousarem os tesouros e os despojos.


Ilustração de Fabiano Seixas Fernandes
@fabiano.seixas.fernandes

Sacrifiquei sangue e barro ao pé do templo que fiz para te bendizer, minha seiva misturada ao pó de onde viestes, corpo moribundo, corpo espasmo, mas sempre imortal, é que só assim, você sabe, para morrer e ressuscitar muitas vezes.

Recitei louvores à tua divindade, cantei hinos, congreguei a irmandade, eternizei versos em bíblia e ajoelhei, muitas vezes, em oração.

E todas essas coisas foram verdade até que, um dia, você deus negou três vezes o meu evangelho e desprezou a minha cosmologia, do alto dos céus que as minhas palavras escancararam para ti nos fundamentos.

Você esqueceu, talvez, pobre ser, que só foi deus porque eu escolhi, e que fora de mim não havia Você. E que, assim como nascem, morrem os deuses também, e são sepultados sob a poeira do tempo das coisas, debaixo dos estilhaços da memória de quem inventou e acreditou.

E novos deuses, amor, você assim com vírgula, reduzido a vocativo, saiba: novos deuses nascem em seu lugar.

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