O casal do 4º andar

Havia a respeito deles, repousando sobre a mesa de jantar da nova síndica, pelo menos uma meia dúzia de reclamações formalizadas em ofícios e boletins de ocorrência, com caráter de urgência, denunciando uma diversidade de atos obscenos. Além disso, aquela pobre mulher já tinha recebido um abaixo-assinado rubricado por algo em torno de trinta condôminos, bem como outras queixas, de natureza oral, mais vigorosas e emocionadas, "Um absurdo! Eles não têm vergonha na cara, esses despudorados?!", teria exclamado uma senhora, horrorizada, depois de vislumbrar o casal andando nu pelo apartamento, com todas, repare, todas as janelas escancaradas.

De qualquer apartamento do terceiro ao quinto andar do prédio da frente era possível vê-los. Nádegas e peitos, barriguinhas expostas, pepeca e jeba, armados para o mundo ou não, em pelo, imagine!, para ver televisão, cozinhar, fazer as refeições ou se espatifar em bolinagens sobre o sofá vermelho.

O vizinho de baixo, senhor E., professor, casado e pai de um adolescente de catorze anos, já havia registrado, mais de uma vez - para a síndica, para Deus, para a família inteira e para o próprio casal de perversos - seu desgosto pelo ranger da cama no andar de cima. Um verdadeiro inferno! Rangia a cama, rangia o chão, rangia a cama, rangia o chão, crec, crec, crec noite adentro, espantando o pecado para dentro da sua própria casa e das mãos do seu jovem filho, que acabava por fazer exercícios obscuros e profanos, incentivado pelos ruídos depravados daquele par de degenerados.

A moradora do lado direito, M., casada, estressada e mãe de uma cria de poucos meses, baixava os olhos quando encontrava a vizinha pecaminosa pelos corredores, invejosa da sua performance na matéria sexual e da robustez com que lhe comia o companheiro, e falava mal dos amantes para quem quisesse ouvir, aumentando aqui e ali a verdade dos fatos, depois de colocar um dos ouvidos bem colado à parede para escutar com mais nitidez, quando o marido não estava olhando.

Mas era a vizinha do lado esquerdo, J., solteira, católica carismática e secretamente viciada em pornografia literária, a organizadora original e a mais comprometida porta-bandeira dessa cruzada moral - que já tinha virado assunto até no bairro - contra os impostores do amor e da ordem, aqueles seres animalescos e desgarrados que faziam ecoar, pelas paredes todinhas, os gemidos mais indecorosos e as gargalhadas mais indecentes, dela, a mulher serpente, por quem entrava todo o pecado no mundo, a cada nova e sonora gozada.

Amaldiçoada fosse!, J. pensava, ultrajada, por aquele corpo inteiro roliço, moreno e bronzeado, e aquele sorriso branco e bem feito de puta sedutora, e pelos lábios em coraçãozinho e pela vozinha toda, toda estimulosa!, filha da puta, cabra veia imunda, inseta, que queimasse no inferno, rapariga!, que Deus não se agradava daquelas coisas. 

Papeis vão, papeis vêm, o tormento foi tanto que a locadora se viu obrigada a expulsar os ardentes locatários, depois de sofrer uma série de ameaças de processos e de ter a sua atividade comercial esculhambada nas redes sociais.

Afinal, chegando à sua casa certo dia, J. flagrou o casal no momento da partida, levando para fora as últimas caixas de pertences. A campeã estremeceu, surpreendida pela enganosa vitória, sentindo de imediato um espesso vazio causado pela caminhar suculento da agora não mais vizinha, que se distanciava com um sorriso tranquilo no rosto e a mão do companheiro agarrada doce à cintura dela.

Abriu a porta do apartamento e rompeu num choro fino, traidor e estranho à alma, logo interrompido pelo achado de um pequeníssimo papel no chão, rasgado nas bordas e com nove algarismos rabiscados numa caligrafia fina e sinuosa, letra de puta. J. levou o papel ao peito e, só então, respirou aliviada.

Ilustração de Allison Duarte 
@alduarte666


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